Un poema de Nuno Júdice en portugués con traducción al inglés y al español
PREPARATIVOS DE VIAGEM
Ao fazer a mala, tenho de pensar em tudo o que lá
vou meter para não me esquecer de nada. Vou ao
dicionário e tiro as palavras que me servirão
de passaporte: o equador, uma linha
de horizonte, a altitude e a latitude,
um lugar de passageiro insistente. Dizem-me
que não preciso de mais nada; mas continuo
a encher a mala. Um pôr-do-sol para que
a noite não caia tão depressa, o toque dos teus
cabelos para que a minha mão os não esqueça,
e aquele pássaro num jardim que nasceu
nas traseiras da casa, e canta sem saber
porquê. E outras coisas que poderiam
parecer inúteis, mas de que vou precisar: uma frase
indecisa a meio da noite, a constelação
dos teus olhos quando os abres, e algumas
folhas de papel onde irei escrever o que a tua ausência
me vem ditar. E se me disserem que tenho
excesso de peso, deixarei tudo isto em terra,
e ficarei só com a tua imagem, a estrela
de um sorriso triste, e o eco melancólico
de um adeus.
PREPARING FOR A JOURNEY
As I pack my suitcase, I have to think of all
I’ll I put in so that I forget nothing. I look
in the dictionary and take the words I’ll use
as my passport: the equator, one line
of the horizon, altitude and latitude,
an insistent passenger’s seat. I’m told
I don’t need anything else; but I keep
filling the suitcase. A sunset
so that night doesn’t fall so fast, the feel of your hair
so that my hand doesn’t forget it,
and the bird that sings not knowing why
in the back garden. And other things that may
seem useless, but which I must have: a middle
of the night indecisive sentence, the constellation
of your eyes when you open them, and some paper
where to write what your absence
will dictate. And if I’m told I’ve exceeded
the luggage weight allowance, I’ll leave it all behind,
and keep only your image, the star
of a sad smile, and the melancholy echo
of farewell.
PREPARATIVOS DE VIAJE
Cuando preparo la maleta, tengo que pensar en todo
lo que voy a meter para no olvidarme de nada. Voy al
diccionario y saco las palabras que me servirán
de pasaporte: el ecuador, una línea
de horizonte, la altitud y la latitud,
un asiento de pasajero perseverante. Me dicen
que no necesito nada más; pero sigo
llenando la maleta. Un poniente para que
la noche no caiga tan deprisa, el tacto de tu
pelo para que mi mano no lo olvide,
y aquel pájaro en un jardín que ha nacido
en la trasera de la casa, y canta sin saber
por qué. Y otras cosas que podrían
parecer inútiles, pero que necesitaré: una frase
indecisa en medio de la noche, la constelación
de tu ojos cuando los abres, y algunas
hojas de papel donde escribiré lo que tu ausencia
viene a dictarme. Y si me dicen que llevo
exceso de equipaje, dejaré todo esto en tierra,
y me quedaré solo con tu imagen, la estrella
de una sonrisa triste, y el eco melancólico
de un adiós.
Navigación sin rumbo, Trad. Luis María Marina
Selección de poemas de Nuno Júdice en portugués con traducción al inglés
A TERRA DO NUNCA
Se eu fosse para a terra do nunca,
teria tudo o que quisesse numa cama de nada:
os sonhos que ninguém teve quando
o sol se punha de manhã;
a rapariga que cantava num canteiro
de flores vivas;
a água que sabia a vinho na boca
de todos os bêbedos.
Iria de bicicleta sem ter de pedalar,
numa estrada de nuvens.
E quando chegasse ao céu, pisaria
as estrelas caídas num chão de nebulosas.
A terra do nunca é onde nunca
chegaria se eu fosse para a terra do nunca.
E é por isso que a apanho do chão,
e a meto em sacos de terra do nunca.
Um dia, quando alguém me pedir a terra do nunca,
despejarei todos os sacos à sua porta.
E a rapariga que cantava sairá da terra
com um canteiro de flores vivas.
E os bêbedos encherão os copos
com a água que sabia a vinho.
Na terra do nunca, com o sol a pôr-se
quando nasce o dia.
NEVERNESS
If I went to neverland
I’d have all I wanted on a bed of nothingness:
dreams nobody had when
the sun set in the morning;
the girl singing on layer
upon layer of living flowers;
water tasting like wine in every
drunkard’s mouth.
I’d cycle without pedalling
on a street of clouds.
And when I reached the sky, I’d
step on the stars scattered on nebulae.
Neverness is where I’d never
get to, if I were going to neverland.
That’s why I scoop it from the ground,
and pour it into neverness bags.
One day, when someone asks me for neverness,
I’ll empty all the bags on their doorstep.
And the girl who sang will rise from the earth
with a flowerbed of living flowers.
And the drunkards will fill their glasses
with the water that tasted like wine.
In neverland, as the sun sets
at the rising of day.
POEMA
As coisas mais simples, ouço-as no intervalo
do vento, quando um simples bater de chuva nos
vidros rompe o silêncio da noite, e o seu ritmo
se sobrepõe ao das palavras. Por vezes, é uma
voz cansada, que repete incansavelmente
o que a noite ensina a quem a vive; de outras
vezes, corre, apressada, atropelando sentidos
e frases como se quisesse chegar ao fim, mais
depressa do que a madrugada. São coisas simples
como a areia que se apanha, e escorre por
entre os dedos enquanto os olhos procuram
uma linha nítida no horizonte; ou são as
coisas que subitamente lembramos, quando
o sol emerge num breve rasgão de nuvem.
Estas são as coisas que passam, quando o vento
fica; e são elas que tentamos lembrar, como
se as tivéssemos ouvido, e o ruído da chuva nos
vidros não tivesse apagado a sua voz.
POEM
The simplest things, I hear them in the quiet
of the wind when the rain, barely
tapping on the window, disturbs the silence
at night, and its rhythm overlays the words. Sometimes,
it is a tired voice, tirelessly repeating
its nightly teachings to whoever lives the night; at other
times, it runs, in haste, trampling over meanings
and sentences as if it wanted to reach the end, faster
than dawn. Simple things,
like the sand we pick up and let run through
our fingers while our eyes look for
a clear line on the horizon; or things
that we suddenly remember, when
the sun spills out from the brief parting of a cloud.
These are the things that go by, while the wind
stays; the things we try to remember, as if
we’d heard them and the sound of the rain on the
window panes had not wiped away their voice.
O BANHO DE SUSANA
Entre ela e a água, um fio de
ouro. Depois, fecha a luz, e
o ouro passa a prata, e a prata
evapora-se em sombra. Só
ela fica, imóvel, sob o céu
onde as estrelas são olhos, e a
lua um reflexo da sua pele.
Mas volta a acender
a luz, como se quisesse que
a vissem. E quando se olha
ao espelho, descobre a beleza
do seu corpo que ela faz
dançar, enquanto se despe,
e todas as estrelas brilham
como olhos ansiosos de vida.
Então, fechando a água,
entra na banheira. E os velhos
saltam de trás das cortinas, de
dentro dos canaviais, de baixo
da relva, de cima dos dosséis,
enquanto ela, de costas para eles,
esfrega a pele com a esponja
desses olhos que a atravessam.
SUZANNA BATHING
A thread of gold, between her
and the water. She turns the light out and
then the gold becomes silver, and the silver
fades away in the shadow. Alone,
she stays, still, under a sky
where the stars are eyes, and the
moon a reflection of her skin.
But she turns the light on
again, as if wanting to be
seen. And as she looks
in the mirror, she discovers the beauty
of her body, making it
dance, while she undresses,
and all the stars shine
like eyes eager for life.
Then, turning off the water,
she steps into the tub. And the elders
jump from behind the curtains, from
inside the reeds, from underneath
the grass, from over the canopies,
while she, her back turned to them,
rubs her skin with the sponge
of all those piercing eyes.
FÉ
Conheci um homem fechado na sua choupana.
As traves eram de vidro. Pelas janelas entravam
os ventos de todos os pontos cardeais. A cozinha
enegrecera com o fumo de antigas refeições.
O homem limpava as paredes com os panos
da cama. As suas mãos tinham a cor da fuligem
e do pó. Pelos olhos vazios escoava-se a luz
dos séculos. Mas o homem, fechado na sua
choupana, não abria a porta a ninguém.
Podiam dizer o seu nome. Podiam pedir-lhe
que saísse, por uma vez, e soubesse que
havia sol. Lá dentro, o homem não sabia
de nada. Esquecera-se do mundo. Fechado na
sua choupana, entre as traves de vidro e
as paredes sem tinta, o homem soletrava
o nome de deus, sem nunca chegar ao fim.
FAITH
I knew a man locked in his hut.
The beams were made of glass. Through the windows,
the winds blew from every cardinal point. The kitchen
had been darkened by the smoke of previous meals.
The man cleaned the walls with
the bed linen. His hands were the colour of soot
and dust. Through his empty eyes the light
of centuries was drained. But the man, locked
in his hut, opened the door to no one.
They might call his name. They might ask him
to come out, for once, to know
the sun. Inside, the man knew of
nothing. He had forgotten the world. Locked
in his hut, among the glass beams and
the paintless walls, the man spelt
the name of god, never reaching the end.
GREVE
Acordar numa madrugada de sol, ouvindo
o trânsito que entra pela janela, vendo os pombos que se alinham
nos ressaltos dos prédios, descobrindo um vento que vem
do fundo das avenidas agitar o cume das copas: eis
a indústria que resta aos poetas, para que façam trabalhar
as palavras, operárias de uma transumância de imagens,
na fábrica do pensamento. Porém, o sol empurra-os para a greve,
e encostam-se aos portões do poema, vendo esvaziarem-se
de sentido os armazéns da estrofe, e alinharem-se numa desarrumação
calculada os camiões vazios da página, para deixarem passar os tubos
por onde deviam correr os versos que alimentam as linhas de montagem
paradas por falta de metafísica. Por que não pensam
nos que esperam pelas ideias que iluminam a eternidade? Por
que não se importam com a ausência de música que o seu protesto
faz ouvir? Não falam; ninguém sabe o que reivindicam. À porta
de nada, não entregam nenhum manifesto, nem sabem responder
a quem lhes pergunta o que fazem ali, ao sol do dia que nasce,
como se nunca tivessem tido outra coisa para fazer.
STRIKE
To wake up at sunlit dawn, listening to
the traffic coming in through the window, seeing the pigeons lining up
on the buildings parapets, discovering a wind coming
from the end of the avenue, ruffling the treetops: such is
the industry left to the poets, to make the words
work, operating the seasonal movement of images,
in the factory of thought. However, the sun pushes them into a strike,
and they lean against the gates of the poem, they watch the stanza’s
warehouses emptying from meaning, and the lorries parked in calculated and untidy
lines on the blank page, so they can give way to the pipes
through which the verses should run, in order to feed the assembly lines
halted through the lack of metaphysics. Why don’t the poets think
about those who wait for ideas that enlighten eternity? Why
don’t they mind about the absence of music played
by their protest? They do not speak; no one knows what they’re demanding.
At the door of nothing, they don’t deliver any manifesto, nor can they answer
whoever asks what they’re doing there, at sunrise,
as if they’d never had anything else to do.
DOMINGO EM CASA
Amanhã podia ser domingo, e
não haver sol; podia ouvir os sinos e
dizer que era apenas uma ilusão; podia
descer a rua e não encontrar o homem
que vende os jornais; podia chegar
ao largo e não ver as mulheres
em grupo a caminho da igreja, onde
vai começar a missa.
Amanhã podia não ser domingo,
e as ruas estarem vazias como se
não houvesse nada para fazer; podia não
ser domingo e todas as lojas
fecharem; podia não
ser domingo e alguém perguntar
o que é que se faz quando não
é domingo.
Amanhã podia ser um dia qualquer,
e não saber em que dia estou; podia
olhar para o relógio e descobrir que
os ponteiros estão parados; podia
ouvir alguém falar, e não saber de onde
vem a voz que sai da sua boca, como
se estivesse sozinho.
Ou então, podia abrir a porta e
ver que o domingo quer entrar; e
puxá-lo para dentro da casa, para
que lá fora fique sem domingo; e
sair para a rua num dia qualquer,
perguntando a quem passa
se viu passar o domingo.
De As coisas mais simples, 2006
SUNDAY AT HOME
Tomorrow it might be Sunday, and
the sun not shine; I could hear bells and
say this was only an illusion; I could
go down the street and not meet the man
who sells newspapers; I could reach
the square and not see the women
gathering on their way to church, where
mass is about to begin.
Tomorrow it might not be Sunday,
and the streets be empty as if
there were nothing else to do; it might not
be Sunday and all shops be
closed; it might not
be Sunday and someone ask
what does one do when it is not
Sunday.
Tomorrow might be any other day,
and I might not know which day it is; I could
look at my watch and find out that
the hands have stopped; I could
hear somebody talk, and not know where
the voice in his mouth is coming from, as if
I were alone.
Or, I could open the door and
find that Sunday wants to come in, and
I could pull it into the house, so that
outside is left without Sunday; and
I could go out on any day,
asking the passers by
if they’d come across Sunday.
UMA POÉTICA NO SÓTÃO
No meio de coisas velhas procuro o que
é novo. Em cada fim vejo um princípio;
e todos os cacos se voltam a colar,
mesmo quando faltam pedaços, ou não
se sabe a que parte pertence a outra.
É assim com o poema: faço-o com as
palavras velhas, as que estão cheias de
bolor, as que foram atiradas para um canto
do dicionário. Algumas, não sei o que
querem dizer; outras, disseram tantas vezes
o mesmo que já perdi o sentido do que
dizem. Mas quando as colo, no verso,
o que ouço tem sempre um outro sentido.
Este poema, por exemplo, não tem
nada de novo. As palavras são fáceis,
os sentidos são óbvios. E é por isso
que ando, no meio dele, à procura de
coisas novas; e ao chegar ao fim,
vejo um princípio, e sei que tudo se volta
a colar, como se nada aqui faltasse.
POETICS IN THE ATTIC
In the midst of old things I search for
what is new. In each end I see a beginning;
and all the broken pieces are glued again,
even if some are missing, or nobody
knows what belongs where.
So it is with the poem: I build it with
old words, the stale ones
that have been thrown into a corner
of the dictionary. Some, I don’t know what
they mean, others have so often said
the same that I’ve lost the meaning of what
they say. But when I stick them together, in verse,
what I hear has always another meaning.
This poem, for example, has nothing
new. The words are easy,
the meanings are obvious. That is why
I wander, inside it, looking for
new things; and when I reach the end,
I see a beginning, and I know that all will again
be glued together, as nothing was missing.
AXIOMA POÉTICO
Há duas hipóteses de sentido para
além da que o poema indica: a primeira,
diz respeito ao que eu sinto;
a segunda, ao que eu penso do que
sinto. Mas a outra hipótese, a que
não está na primeira nem na segunda
possibilidade, é a que fala do que
eu penso do que sinto e, por outro
lado, do que eu sinto do que penso. Se
não sei, ao certo, qual delas é mais certa,
é porque aquilo que é mais certo é
o incerto, e quanto mais incerto mais
o sinto como certo. Chego, por isso,
a uma conclusão: a terceira hipótese
decorre das duas primeiras, e o que
penso faz-me sentir que só sinto
porque penso, embora também
pudesse pensar que só o sinto por
não haver sentido sem sentimento.
POETIC AXIOM
There are two hypotheses of meaning beyond
the one shown by the poem: the first one
is concerned with what I feel;
the second with what I think about
what I feel. But the other hypothesis, the one
which is not in the first nor in the second
possibility, is the one that speaks about
what I think about what I feel and, on the other
hand, what I feel about what I think. If
I don’t know with certainty, which one is most certain,
it’s because what is most certain is
the uncertain, and the more uncertain, the more
I feel it as certain. I, therefore, reach
a conclusion: the third hypothesis
derives from the first two, and what
I think makes me feel that I only feel
because I think, although I could
also think that I only feel it
because there is no meaning without feeling.
in The simplest things, 2006
ODE MARÍTIMA COM TERRA À VISTA
Um mar encheu e esvaziou-se, esta
noite. Não foi uma maré prevista; não foi
um engano da lua. Um mar subiu quando
o chamei, e desceu quando não
lhe abri a porta. Vi-o rebentar
as ondas contra a fechadura,
como se quisesse rodar a chave
com a espuma. Mandei-o embora, disse-lhe
que me tinha enganado quando
o chamei; e ele fazia levantar as gaivotas
de todos os seus rochedos, e obrigava-as
a voar em roda do patamar, para que as suas asas
batessem nas paredes. Pedi-lhe que me
deixasse; e ele obrigava o vento a soprar,
para que o seu sopro entrasse pelas
frinchas da porta, e impregnasse de maresia
toda a casa. Falei-lhe do horizonte,
para que me deixasse; e ele
empurrava barcos contra as janelas,
como se isso me levasse atrás
das suas velas. Tranquei todas as portas da casa;
desci os estores; apaguei as luzes. O mar
acalmou, por fim. Ouvi-o descer
as escadas, e deixar um areal
na rua da frente. De manhã, quando
saí de casa, as gaivotas dormiam; não
se ouvia nenhum vento; os barcos
naufragados estendiam-se pela rua;
o sol secava a espuma ao longo
dos prédios. Enterrei os pés na areia,
como se estivesse na praia, e
atravessei a rua como se entrasse
no mar.
MARITIME ODE WITH LAND IN SIGHT
A sea has come in and gone out,
tonight. It was not a foreseen tide; it was not
due to a faulty moon. The sea came in when
I called it and went back when I didn’t
open the door. I saw its waves
rolling against the lock,
as if it wanted to turn the key
with its foam. I sent it back, I said
I had made a mistake when
I called it; and it forced the seagulls
to fly around the landing, bashing
their wings against the walls. I asked
to be left alone; and it forced the wind to blow
and flow through the door cracks, spreading
the emptied sea smell through
the whole house. I spoke of the horizon,
so that the sea would let go of me; and it
pushed boats against the windows,
as if that would make me follow
their sails. I locked all the doors of the house;
I lowered the blinds; I turned off the lights. The sea
calmed down, at last. I heard it go down
the stairs and leave a sandy beach
on the street, opposite. In the morning, when
I left the house, the seagulls slept; there was no
wind; shipwrecked
boats were spread along the street;
the sun dried the foam on
the buildings. I buried my feet in the sand,
as if I were on the beach, and
I crossed the road as if entering
the sea.
A DEUSA DO AMOR
Num quarto branco, a mulher que se despe
tem a luz do candeeiro. Os seus olhos
são os focos que iluminam o gesso do tecto; e das suas
mãos sai a luz que se derrama pelas
paredes, como se fossem as nascentes
de um rio que atravessa o vale dos ombros,
passa o desfiladeiro dos seios e se espraia
pela planície do ventre, até ao oceano
do sexo. E se a mulher fechar os olhos,
enquanto espera que a maré do acaso
volte a subir, um temporal de fogo
percorre o vidro das janelas. O relâmpago
pinta de um vermelho de nuvem
os seus lábios; e as ondas da noite sobem
até à ponta dos seios, desmanchando
os cabelos presos numa vegetação
de dunas. Então, a mulher nua
volta a abrir os olhos; e o vento que entra
pela janela percorre-a com as suas mãos
de nortada, e possui o seu corpo
até o deixar seco na branca exaustão
da sua nudez.
THE GODDESS OF LOVE
Inside a white room, the woman, undressing,
lights up like a lamp. Her eyes
are the spotlights illumining the plaster of the ceiling; and out
of her hands come the beams of light that spill over
the walls, like the sources
of a river that flows across her shoulders,
through the gorge between her breasts, and floods
the planes of her belly, down to the ocean
of her sex. And if the woman closes her eyes,
while waiting for the tide of chance
to come in again, a storm of fire
traverses the window panes. The lightening
paints her lips in a red of cloud; and the night waves
climb up to the tips of her breasts, loosening
her hair in waves of sandy
dunes. Then, the naked woman
re-opens her eyes; and the wind coming
through the window feels her with its
northern breath, and possesses her body
until it is left dry in the white exhaustion
of its nudity.
ANÁLISE DE UM EPISÓDIO DO TEATRO DE SHAKESPEARE
Nunca percebi bem a história da floresta que
andava atrás da lady macbeth. Se a lady macbeth
era feia como os trovões, o que é que a floresta
lhe queria fazer para andar atrás dela? As florestas
costumam andar atrás de belas ninfas, e
quando as apanham enrolam à sua volta os
troncos das árvores, cobrem-lhes de folhas
os cabelos e escondem os seus púbis sob
as grandes flores ainda húmidas do orvalho.
Lady macbeth, porém, corre mais depressa
do que a floresta e sacode as mãos manchadas
de sangue para ver se as limpa com a névoa
húmida do Outono. Se a floresta a apanha,
rasgará o tecido que lhe cobre os seios e a
lady macbeth deitar-se-á na erva, e tentará
esconder os mamilos sob ramos de urtigas e
de azedas, ficando com os seios amarelos
à espera que o sol a liberte da sombra da floresta.
E ao correr à frente da floresta, a lady macbeth
vai tirando de cima do seu corpo os tecidos
que o escondem, e corre cada vez mais depressa
até ao cimo do monte onde a floresta já não vai poder
chegar porque é um monte seco e rochoso, e
as raízes da floresta não têm por onde crescer
em busca de água para alimentar os troncos. Nua,
no cume, lady macbeth agita os cabelos para
afastar as nuvens e os abutres; e o sangue corre-lhe
das mãos para as pedras, como se ela fosse uma fonte.
E todos os dias, ao fim da tarde, o sol bebe o sangue
das mãos de lady macbeth, e deita-o sobre a floresta
que ficou imóvel, ao pé do monte, e seduz lady
macbeth com os seus troncos cobertos de folhas vermelhas.
COMMENTARY ON AN EPISODE OF A SHAKESPEARE PLAY
I never quite understood the story of the forest
chasing lady macbeth. Since lady Macbeth
was terribly ugly, what was the forest
trying to do by chasing her? Forests
usually chase beautiful nymphs, and
when they catch them, twist the tree branches
around them, cover their hair with leaves and
hide their pubis with dew-moist large flowers.
Lady macbeth however runs faster
than the forest and shakes her blood stained
hands trying to wash it off with the humid
autumn mist. If the forest catches her,
it will tear apart the cloth that covers her breasts
and lady Macbeth will have to lie on the ground trying
to hide her nipples with nettles and sour
grass, which will make her breasts yellow,
and wait for the sun to release her from the forest shadows.
As she runs ahead of the forest, lady Macbeth
sheds, one by one, the robes
that conceal her body and runs faster and faster
to the top of the hill which the forest cannot
reach because it is dry and rocky
and the tree roots cannot spread
since there’s no water to feed its trunks. Naked
on the hilltop, lady Macbeth shakes her hair
to dispel clouds and vultures – and blood drips
from her hands on to the stones, as if she were a spring.
And every day, as it goes down, the sun drinks the blood
from lady macbeth’s hands to spill it over the forest
at the foot of the hill, and the forest can thus seduce lady
Macbeth with its trunks covered in red leaves.
trad. Ana Hudson
Nuno Júdice. Nació en Algarve, Portugal, en 1949. Realizó estudios de Filología románica. Fue el primer poeta portugués editado en Francia por la prestigiosa editorial Gallimard. Es crítico literario, profesor de Literatura Comparada en la Universidad de Lisboa y agregado cultural de la embajada portuguesa en Francia. Dirige, además, la Casa de Poesía de Fernando Pessoa. Es considerado uno de los más importantes poetas portugueses surgidos a continuación del grupo Poesía 61. Autor de varios volúmenes de poesía. Obtuvo el Premio Iberoamericano de Poesía Reina Sofía en 2013.